sexta-feira, setembro 7

Vinícius de Moraes













Tela : Pablo Picasso

Modelo: Françoise Gilot



RECEITA DE MULHER

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental.
É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso
(ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível.
É preciso que tudo isso seja belo.
É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada
e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser,
Mas que se reflita e desabroche no olhar dos homens.
É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado.
É preciso que umas pálpebras cerradas lembrem um verso de Éluard
E que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne:
que se os toque como no âmbar de uma tarde.
Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas.
Nádegas é importantíssimo.
Olhos então nem se fala, que olhe com certa maldade inocente.
Uma boca fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras;
que uns ossos despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral levemente à mostra;
e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os menbros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhavel na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre flores sem mistério.
Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos.
A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
a 37 graus centígrados,
podendo eventualmente provocar queimaduras do primeiro grau.
Os olhos, que sejam de preferência grandes
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra;
e que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão que é preciso ultrapassar.
Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber o fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade de pássaro;
e que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave;
e que exale sempre o impossível perfume;
e destile sempre o embriagante mel;
e cante sempre o inaudível canto da sua combustão;
e não deixe de ser nunca a eterna dançarina do efêmero;
e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.



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