domingo, março 22

A vez de "um tantinho de prosa" mas, com poesia enternecedora...


Enquanto houver poesia...‏

Recebi este texto de uma "amiga emprestada". Sim, emprestada pois de outra maneira dificilmente teria tido oportunidade de conhecê-la. Trata-se de Mirian, mulher de um amigo de Eduardo, meu sobrinho. Aliás, ele também se chama Eduardo e são amigos de longa data. Desde os tempos do Anchieta. Amigos e compadres. Além disto, ambos estão vivendo experiências parecidas. Estão, por força de trabalho - eles, além de tudo, trabalham na mesma empresa, vejam vocês!!! - longe do Brasil por um período. Eduardo e Mirian, lá no Oriente e Eduardo e Célia, no Velho Mundo.
Conheci Mirian, Eduardo e os pitocos Gabriel e Thiago en passant, nos eventos como aniversários ou encontros por acaso. A última vez que os vi foi no aniversário de 2 anos de Eduarda. Quando ela completou 3 anos, em set/2008, eles não foram pois estavam viajando.
Agora, encontro eles novamente, por conta do blog que Célia criou para ficar mais pertinho de nós e para nos contar o cotidiano que estão vivendo lá longe, no outro lado do mundo.


O caso do poema roubado
(O Globo)
***Por Cora Rónai - fotógrafa, jornalista, colunista de jornal e autora de livros e peças para crianças.


Há coisa de dois ou três meses apareceu, no portão do sítio, um pacote grande, embrulhado num saco de lixo preto. Ninguém viu quem trouxe.

Amanheceu e estava lá. Assim que foi notado, ficaram todos da casa, bípedes e quadrúpedes, muito cabreiros com a sua presença. Nos dias de hoje, ninguém vê com confiança ou simpatia pacotes grandes, embrulhados em sacos de lixo pretos.

Os cachorros cheiraram e latiram, os gatos mantiveram distância, o Dirceu olhou de longe, cutucou com uma vareta, chamou Mamãe. O conteúdo parecia ser duro, sólido, como madeira. Não era nada morto, com certeza. E não parecia ser bomba, muito embora ninguém da família tenha a mais remota idéia de como seja uma bomba, salvo pelo que se vê no cinema e nos desenhos animados.

Finalmente, depois de mais cutucadas e de muita hesitação, o pacote foi trazido para dentro, e aberto com o cuidado que a desconfiança recomendava.

Quando o conteúdo se revelou, surpresa total: Quem poderia imaginar que um poema roubado há 30 anos voltasse ao lar daquela maneira?!

Quando o sítio ficou pronto, em princípios dos anos 60, uma das primeiras providências dos meus pais foi espalhar pelo jardim e pela floresta uma dúzia de poemas. Papai os selecionava, Mamãe os pintava em tabuletas e ambos escolhiam juntos, com capricho, as árvores e os cantinhos onde seriam expostos.

Passear pelo sítio era como entrar numa pequena antologia sentimental.

Com o tempo, as tabuletas foram sumindo. Algumas queimaram junto com as suas árvores nos incêndios que, há alguns anos, eram comuns na região e que, apesar dos esforços do pessoal lá de casa, eventualmente atingiam partes do terreno. Outras foram vítimas do tempo. A maioria, porém, desapareceu sem deixar vestígios.

O poema devolvido chama-se "Casa antiga", foi escrito em 1964 por minha madrinha Cecília Meireles e dedicado a Nora e Paulo Rónai:


"Forrarei tua casa já tão antiga

Com um papel que imita as paredes de tijolo.

Ficará tão lindo como se estivéssemos na Holanda.

Forrarei tua casa assim, mas por dentro,

De modo que, longe de todas as vistas,

Será como se estivéssemos ao ar livre, no jardim.

E deixarei uma parede quebrada? Não uma porta, não uma janela:

Uma parede quebrada por onde passe um ramo de goiabeira

Carregado de flores e vespas.

Parecerá que estamos sonhando,

E estamos sonhando mesmo,

E parecerá que estamos vivendo,
E a vida não é mesmo um sonho impossível?"
........................

Dentro do pacote, junto com a tabuleta, veio um bilhete escrito em letra pouco cultivada, na folha arrancada de um caderno.

Dizia o seguinte:

"Quando era menino achei este quadro lindo, pelo poema. Peço perdão por ter roubado este quadro. Hoje me converti a Jesus e sinto necessidade de devolvê-lo. Sinto-me envergonhado pela minha atitude. Mas, era só um menino. Peço perdão a Deus e a vocês. E que vocês também consigam perdoar".

Não havia nome, assinatura, nada.

Ficamos com muita pena, pois teríamos gostado de conhecer e abraçar o menino antigo que roubou o poema, e o homem correto que o devolveu, passados tantos anos.

Mal sabe ele que nos deu um presente muito maior do que o que levou:

Um mundo onde crianças roubam poemas e adultos os devolvem é um mundo de beleza e de esperança.


Nós mesmos sentimos que o que fazemos é uma gota no oceano.
Mas o oceano seria menor se esta gota faltasse."
(Madre Tereza de Calcutá)



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